A estrada Georgetown/Guiana – Boa Vista/Roraima, nos 600 km iniciais, em território guianense, podia ser dividida em vários segmentos. Os primeiros 100 km, que conduzem a Linden, a segunda maior cidade do país, às margens do Rio Demerara, eram adequadamente asfaltados e sinalizados. A partir do perímetro urbano, já em plena floresta amazônica, o caminho era de terra e as pontes de madeira, bastante precárias, até a fronteira com o Brasil. Neste trecho, havia um posto policial e alfandegário, na altura de Mabura Hill, a partir do qual iniciava-se o percurso mais perigoso, repleto de curvas que serpenteavam entre colinas densamente arborizadas e escondiam o avanço de pesados caminhões carregados de toras extraídas pela madeireira malaia Demerara Timbers Limited. Em seguida, chegava-se a Kurupukari, na margem oriental do Essequibo, cuja correnteza era vencida em velha balsa doada pela Paranapanema, empresa mineradora brasileira que, no final da década de 80, abrira a via de Mabura Hill à cidade de Lethem, na divisa entre o Brasil e a Guiana, demarcada pelo Rio Takutu, sobre o qual se construía uma ponte. Inaugurada somente em 2009, a obra estava paralisada, e assim permaneceu durante anos, por determinação do Tribunal de Contas da União, tendo em vista irregularidades perpetradas pelo então governo de Roraima. A partir daí, de Bonfim, já em território brasileiro, até Boa Vista, a estrada fora convenientemente implantada.
Transposto o Rio Essequibo, chegava-se ao Iwokrama – Centro Internacional para a Conservação e o Desenvolvimento da Floresta Tropical. O acesso era bloqueado por uma barreira, onde um funcionário uniformizado solicitava e anotava as identidades e passaportes dos viajantes, bem como as placas de seus veículos. A poucos quilômetros desta baliza, erguia-se uma aprazível casa de hóspedes, já que um dos objetivos do centro era proporcionar turismo ecológico. O Iwokrama contava, ademais, com uma sede administrativa em Georgetown, um diretor-geral, um “staff” mais numeroso do que o de muitas embaixadas acreditadas junto ao governo guianense, gozava de imunidades e privilégios e seus veículos tinham direito a placas diplomáticas. Apesar destas características, a agência de informação da Guiana (GINA), em sua página da Web, definia o centro como uma mera “instituição autônoma, sem finalidades lucrativas, de pesquisa e desenvolvimento”.
Ao chegar a Georgetown, em 2000, a fim de chefiar nossa missão diplomática, confundi a instituição com uma reserva florestal ou um parque ecológico. Equívoco. O Iwokrama resultara de uma cessão de soberania sobre 3.700 km² (o Distrito Federal possui 5.780 km²)do território amazônico da Guiana. A iniciativa coube ao então presidente Desmond Hoyte que doou a gleba à comunidade internacional, por ocasião da Conferência de Chefes de Governo da Commonwealth, realizada em Kuala Lumpur, em 1989. Posteriormente, a Assembléia Nacional da Guiana ratificou a outorga, através do Iwokrama Act, aprovado em 1996.O gesto, em princípio um impulso de consciência ecológica, visando à preservação da Amazônia guianense, foi, na realidade, político. Objetivou angariar apoio e proteção internacionais contra a pretensão venezuelana a 2/3 do território da Guiana, ou seja, às terras que se estendem da margem ocidental do Essequibo à fronteira com a república bolivariana, espaço no qual o Iwokrama encontra-se encravado.
O centro, cujo patrono é o príncipe Charles, que o visitava amiúde, é administrado por uma junta internacional de curadores designados conjuntamente pelo governo da Guiana e pela secretaria da Commonwealth. A sua saúde financeira dependia da benevolência de doadores. Dentre os principais, destacavam-se o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo da Commonwealthpara a Cooperação Técnica (FCCT), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID), a Comissão Européia (CE) e a Agência Canadense para o Desenvolvimento Internacional (CIDA). Finalmente, o enclave, além de desenvolver pesquisas e implementar projetos de desenvolvimento sustentável da floresta amazônica, tais como um alentado ‘Plano de Administração do Corredor Viário do Iwokrama”, presta assistência a milhares de integrantes de comunidades indígenas consideradas transnacionais que circulam livremente através das fronteiras da Guiana com o Brasil e a Venezuela.
Em resumo, tratava-se, efetivamente, da internacionalização de um naco da Amazônia, o que equiparava o centro, se não a um território soberano, no mínimo, a um organismo internacional, com sedes urbana e rural. O precedente, em área tão sensível, para o qual chamei reiteradamente a atenção do Ministério das Relações Exteriores, não mereceu a devida atenção do governo brasileiro. Defendi, na ocasião, e defendo que nossas relações com a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa deviriam ser prioridades de política externa. Ao invés de bancar obras em países estrategicamente pouco significativos, o governo poderia empenhar-se, por exemplo, no asfaltamento da estrada Georgetown – Boa Vista, o que garantiria, de imediato, ao carente estado de Roraima, que começava a despontar como nova fronteira agrícola (arroz e soja, principalmente), um vantajoso porto de mar à mesma distância do de Manaus, sem a necessidade de a mercadoria descer o rio, a fim de atingir o oceano. A própria Zona Franca poderia beneficiar-se de tal conexão: segundo detalhado levantamento apresentado, na época, pelo governo da Guiana, o custo do frete, pelo porto de Georgetown, cairia em torno de quase 50%, em relação à exportação de produtos manauaras por outros terminais fluviais ou marítimos da região.
Mais informações no site Iwokrama.org.