Não se Inventa a História

A história, cujo pai, como todos sabem, foi Heródoto e da qual a biografia é ramo significativo que ajuda, inclusive, a elucidá-la, deriva do grego antigo “historía” que significa pesquisa, conhecimento advindo da investigação.  A definição mais divulgada pelos livros sobre a matéria diz tratar-se da “ciência que estuda o ser humano e sua ação no tempo e no espaço, concomitantemente à análise de processos e eventos ocorridos no passado”.  Ao longo dos séculos, estudiosos têm se debruçado sobre fatos e vidas, a fim de estabelecer a exata correlação entre ambos e construir, assim, uma narrativa confiável a respeito do que efetivamente ocorreu em determinado período e lugar.  A tarefa não é fácil, tendo em vista a tendência dos indivíduos de proteger sua privacidade e de deturpar a realidade de acordo com suas conveniências.  Qualquer livro de história ou biografia representa, portanto, um esforço hercúleo por parte de historiadores cujas obras podem ser revistas, aperfeiçoadas e até corrigidas, mas jamais conspurcadas por fatos que não foram rigorosamente pesquisados e investigados, ou seja, por leviandades e mentiras. Não se inventa a História. 

Peço desculpas pelo prólogo longo mas necessário para sustentar meu repúdio a filmes ou quaisquer outras manifestações artísticas que fantasiem biografias e a própria história. “Shakespeare Apaixonado” (1998), por exemplo, que conta um bloqueio criativo do dramaturgo, do qual só se recupera graças a uma paixão arrebatadora, não passa de um pastiche do renomado “Romeu e Julieta”, ou seja, a narrativa, para utilizar termo inglês apropriado, “never took place” (jamais aconteceu).  “Dois Papas” (2019) sobre um encontro tenso e profícuo entre os Papas Bento XVI e Francisco, anterior à renúncia de um e à eleição do outro, é pura ficção e, novamente, “never took place”.  Ambas as películas, como tantas outras que forjam a história, não passam de entretenimento, mas podem levar espectadores incautos a acreditar que a criatividade de Shakespeare foi realmente salva por uma musa que até nome tinha, Lady Viola, ou que os pontífices alemão e argentino realmente trocaram farpas e acertaram suas diferenças no jardins de Castelgandolfo e na Capela Sistina. O que dizer então da posteridade que pode perfeitamente tomar essas “fake news” por relatos históricos?

Na mesma linha de raciocínio está a insistência em apresentar Jesus como homossexual (não utilizo o termo “gay”, uma vez que desconheço homossexuais “gays”) ou negro ou mulher, a exemplo do que a produtora de vídeos “Porta dos Fundos” e a Escola de Samba da Mangueira acabam de fazer. Quanto à livre interpretação da orientação sexual de Cristo, além de ser de mau gosto é falta de respeito, sim, como seria afrontoso insinuar que o Rabino era um garanhão heterossexual que saía por aí comendo mulheres a torto e a direito, uma vez que sua castidade é um dos pilares das igrejas cristãs, alicerce do celibato clerical. Se a liberdade fosse tomada com o deus dos muçulmanos, o autor do disparate já estaria condenado à morte pelos aiatolás.  No que diz respeito à transfiguração racial e de gênero de Jesus, a pegadinha, que contou com consultoria de pastor evangélico, é bizarra mas inconsequente, a não ser pelo fato de se tratar de cabotinismo, pura apelação e inverdade histórica, como aliás o seu atribuído homossexualismo também o são.  O triste é que existem homossexuais, negros e mulheres que sacrificaram suas vidas em busca de respeito, aceitação e inclusão.  Foram vilipendiados, encarcerados e até assassinados.  Esses, sim, merecem uma mensagem de final de ano ou um carro alegórico em qualquer escola de samba, sem que isso seja motivo de ofensa a quem quer que seja. 

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