As eleições para as Presidências da Câmara dos Deputados e do Senado acabam de entrar para o rol dos paralisantes da vida nacional, a exemplo do carnaval, da copa do mundo etc. Há mais de um mês, desde que Maia e Alcolumbre souberam que não poderiam se reeleger, Suas Excelências negociam, se aliam, se desaliam e se traem, enquanto o Brasil, entre as boçalidades de Bolsonaro e a corrida do Pazuello para recuperar o tempo perdido, assiste desorientado ao recrudescimento da pandemia, à incipiência da vacinação e ao “Big Brother” encenado pelo Legislativo que colocou o país em compasso de espera. Não mais. No que diz respeito à Câmara, que é o que mais nos interessa, Arthur Lira acaba de ser eleito com o apoio pouco republicano do Presidente da República. Foi dado, assim, o pontapé inicial no projeto do Centrão, conforme apontei, numa primeira avaliação do espetáculo que doravante assistiremos, ou seja, transvestir Bolsonaro em Rainha Elizabeth, um governante meramente decorativo, apoderando-se da sua lendária “Bic”. Engana-se, portanto, quem acredita que a Câmara ficará refém do Executivo. É o contrário.
As mulheres sabem perfeitamente quando um relacionamento é tóxico e ameaça sua integridade moral e física. Mas, como dizia Camões, “o amor é fogo que arde” e, eu diria, que cega. No caso do concubinato do Bolsonaro com o Centrão, acrescentaria que o medo é onda que afoga e induz o banhista a se agarrar na primeira tábua de salvação que passa à deriva. Neste gesto desesperado, Bolsonaro despejou 20 bilhões de reais e uma miríade de cargos em todos os escalões do serviço público no colo do Centrão. Mas a conta ainda está longe de ser paga. A esperança – porque certeza não há – é que Arthur Lira impeça o impeachment, paute reformas, sobre as quais o próprio Bolsonaro está inseguro, e promova sua agenda de costumes.
O Centrão é um agente político que vem atuando desde a Assembleia Constituinte de 1987. É um fenômeno da redemocratização. Trata-se de um grupo de partidos sem ideologia especifica que negocia seu apoio ao Poder Executivo em troca de verbas e cargos que lhe permitam atender redes clientelistas. A diferença dos que se locupletaram com o Mensalão, o Petrolão e outros esquemas é que o Centrão não recebe suborno propriamente dito. Por outro lado, o número de agremiações políticas que o compõe vem aumentando ao longo das décadas. Em suas últimas atuações relevantes, chegou a reunir 13 partidos, cuja atuação foi determinante no impeachment de Dilma Rousseff e na permanência de Michel Temer na Presidência, a despeito de duas denúncias apresentadas pela Procuradoria Geral da República. Na opinião dos analistas políticos, o Centrão equivale a um câncer na política brasileira que Bolsonaro e seus Generais prometeram extirpar para, em seguida, cair-lhe nos braços. Pertencentes, em sua maioria, ao baixo clero, que Bolsonaro integrou, seus membros, ¼ dos quais é alvo da justiça, têm interesses meramente paroquiais, em detrimento das grandes questões nacionais.
No processo do “toma lá, dá cá”, os ganhos, conforme o passado nos ensinou, são díspares, mas nenhuma das partes pode sair totalmente inadimplente. Bolsonaro acredita, assim, que o Centrão aprovará as reformas tributária e administrativa, das quais depende, em grande medida, a recuperação da economia brasileira. Sobre a primeira ele nada entende e, quanto à segunda, ele é contra, por motivos eleitoreiros, como o foi em relação à da previdenciária que quase soçobrou graças às suas inoportunas intervenções. Para destravá-las, no entanto, terá de dobrar a aposta na roleta viciada do Centrão. Resta a agenda de costumes, defendida, sobretudo pelas bancadas evangélica, da bala e outras de difícil definição, suas aliadas, que, no entanto, têm poucas possibilidades de serem ouvidas, como não o foram, até agora, em suas reivindicações reacionárias e retrógradas. A sociedade brasileira pode esperar, no entanto, Projetos de Lei sobre matérias que, se aprovadas, representariam o cancelamento de vitórias arduamente conquistadas.
Vejamos: negros e indígenas – o fim das cotas raciais; mulheres – a limitação de casos em que o aborto é permitido, em especial, na eventualidade de estupro; LGBTQI+ – a proibição do uso do nome social (Projeto de Lei de autoria do Bolsonaro, quando parlamentar); Direitos Humanos – o excludente de ilicitude, que permite praticar atos, considerados crime, sem ser punido; Direito Penal – o engavetamento da Proposta de Emenda Constitucional e do Projeto de Lei que autorizam a prisão após a condenação em segunda instância, o que favorece políticos do Centrão e, paradoxalmente, o ex-Presidente Lula, o arqui-inimigo (atualmente, nem tanto) de Bolsonaro; desarmamento – maior relaxamento das exigências para a aquisição de armas (reivindicação das milícias); trânsito – a eliminação da medicina e da psicologia do trânsito, o equivalente a eliminar outras especialidades em ambas as searas, como, e.g., a pediatria ou a psicologia hospitalar. Outras aberrações e inadequações poderão surgir. Um lamentável retrocesso, caso sejam sequer pautadas.