Quando cheguei em Budapeste, para uma permanência de quatro anos a serviço da Embaixada do Brasil naquela capital, fui surpreendido pela ocorrência significativa de pedicuros nas ruas da cidade, atendendo clientes em cubículos semelhantes aos utilizados pelos engraxates. O freguês entrava, sentava e colocava os pés em uma cuba com água e o procedimento que os franceses chamam de “pédicure” se iniciava. Por curiosidade, entrei em alguns desses estabelecimentos, mas confesso que, desconfiado de que os protocolos de higienização não eram devidamente observados, não tive coragem de entregar meus pés aos cuidados de tais profissionais.
Intrigado, busquei uma explicação para a proliferação dos pedicuros e me foi dito, por um velho funcionário húngaro da Embaixada, que o governo comunista, que acabava de ruir com o Muro de Berlim, importava anualmente, dos países que oferecessem o menor preço, pares de sapatos masculinos e femininos, pretos e marrons. Cada operário/a podia, então, adquirir dois pares, um de cada cor. A má qualidade dos calçados provocava toda sorte de problemas nos pés, de calos a unhas encravadas, exigindo a ida frequente aos pedicuros. É claro que a Nomenclatura, os cientistas, intelectuais e artistas tolerados pelo regime, bem como aqueles que podiam sair do país (somente podiam viajar ao exterior os autorizados pelo governo) tinham acesso a produtos melhores e resguardavam, assim, a saúde dos pés.
Não posso deixar de traçar um paralelo entre a história acima narrada com a situação das vacinas contra a covid-19 que foram, após meses de idas e vindas, finalmente adquiridas pelo governo brasileiro. O negacionismo de Bolsonaro, manifesto desde o início da pandemia e que custou a cabeça de dois qualificados Ministros da Saúde, limitou não somente a quantidade, mas a qualidade das vacinas que estão à disposição da população, ou seja, apenas duas e, lamentavelmente, as menos eficazes e as mais controversas. Enquanto isso, a cloroquina, um medicamento sem eficácia comprovada no combate ao vírus, foi produzido, por ordem do Presidente da República, em grandes quantidades, pelo Laboratório do Exército e receitado pelo Ministério da Saúde como tratamento precoce.
Como se não bastasse, os hospitais e clínicas particulares foram desautorizados a importar vacinas. A possibilidade de que tais instituições possam aplicar imunizantes não configura, a meu ver, privilegiar aqueles que podem pagar. Trata-se de salvar vidas a qualquer custo e, ao mesmo tempo, liberar vacinas para os de menor poder aquisitivo, aliviando a pressão sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). Entrementes, discute-se a reedição do auxílio emergencial, quando, na verdade, o que deveria estar em pauta é a imunização urgente e prioritária daqueles cuja renda foi subtraída pela pandemia e cuja vacinação está prevista para as calendas gregas. Pelo andar da carruagem, a referida ajuda terá de ser estendida até 2022, enquanto 2021 será mais um ano perdido para a economia brasileira, cujos setores mais atingidos pela pandemia, como a indústria, o comércio e o turismo, só se recuperarão mediante o levantamento das medidas de isolamento e distanciamento sociais.
Aos 77 anos, com comorbidades inerentes à idade, passo, a cada dois dias, diante do estacionamento do Shopping Iguatemi onde vacinas estão sendo aplicadas. Os postos estão às moscas ou porque os que devem ser vacinados já o foram ou porque não o querem. Contudo, ao aproximar-me do leão-de-chácara, postado à entrada do pátio, a resposta é categórica: “idosos com 79 anos ou mais”. Não é o caso de furar fila, como muitos o estão fazendo, criminosamente, mas o de reprogramar, a fim de que o maior número de idosos possa ser vacinado, o mais rapidamente possível. Entrementes, o programa de vacinação empaca por falta de planejamento e pela absoluta escassez de doses das vacinas comunizadas pelo governo. Na Hungria, os sapatos, pelo menos, não faltavam.
Em tempo: o Correio Braziliense anunciou hoje que, pendente da chegada, ainda não confirmada, de novas vacinas ao Distrito Federal, a Secretaria de Saúde iniciará, quando for possível, a vacinação dos idosos com 78 anos. Uma longa e angustiante espera. Entrementes, 10 pessoas morrem, em média, diariamente em Brasília, vítimas de covid-19.