O leilão on line iniciou-se às 19,00 horas. Faço o meu log in e recebo, imediatamente, o número de uma cartela: 5775. Os lotes passam rapidamente, alguns retirados por ausência de lances. Finalmente, o tão esperado lote 366. Segundo a descrição, trata-se de cabideiro em madeira nobre com 135 cm de altura. Preço básico: R$ 1.500,00. Inicia-se a disputa. Nervosismo. Final feliz: bato a R$ 1.650,00.
Trata-se, na realidade, de um cabideiro lançado pela Casa Hermès, de autoria de Paul Dupré Lafon (Marseille, 1900 – Deauville, 1971). Lafon, arquiteto e designer, famoso por seus móveis, objetos de arte e acessórios art déco, com inspiração cubista-modernista, trabalhou para a Hermès durante as décadas de 1920 e 1930, quando criou peças como cinzeiros, luminárias e…o famoso “Valet de Nuit” que foi colocado no mercado, à época, por US $ 25.000,00.
Persigo esse objeto de desejo desde 1974, quando dele tomei conhecimento em Berna, a elegante capital suíça, meu primeiro posto diplomático. Nos anos seguintes, encontrei-o em antiquários europeus, norte-americanos e, pelo menos, em um argentino, por preços proibitivos e injustificáveis para um simples cabideiro. No início do século, comecei a detectá-lo em leilões no exterior e, enfim, nos de São Paulo e Rio de Janeiro, onde, anônimo e desvalorizado, comprei-o por pouco mais de US $ 430,00.
A epopeia, que durou 45 anos, ilustra o fato de que antiquário é mais uma atividade vítima da internet. Não há como competir com mais de uma dezena de leilões diários, presenciais e/ou on line, onde cabideiros Hermès, perfumeiros Lalique, móveis Béranger de jacarandá maciço e obras dos nossos principais artistas plásticos (a maioria de autenticidade contestável) são vendidos a preço de banana por proprietários com a corda no pescoço ou que, simplesmente, não identificam ou valorizam o que têm, na ânsia de “desapegar”.
O segundo fator de decadência dos antiquários é o mercado. Os componentes das gerações Y e Z, com raríssimas exceções, não sabem o que é antiguidade, confundem-na com quinquilharia, e têm raiva de quem sabe. Estamos na era do descartável, do MDF, dos móveis prêt-à-porter que, em sua grande maioria, terminam nos brechós da vida. Metal, então, nem se fala! Ao ponderar que a prataria francesa, cabeça de Mercúrio, do século XIX da avó não deveria ser vendida a quilo, o neto, jovem e promissor economista, respondeu-me: “Você acha que eu tenho alguém para esfregar essa merda o dia inteiro?”
O terceiro e último verdugo das antiguidades é o “moderno” (?) cânone arquitetônico que vigora desde a bauhaus, fundada em 1919 (!): o estilo é não ter estilo, nada “datado”, no jargão da classe. O resultado é uma sequência de cubos e paralelepípedos gigantes que se acomodam entre si, cercados de vidros por todos os lados. Por sinal, nada mais “datado”. Obviamente, uma estante secrétaire barroca do século XVIII e tapetes persas raros e centenários de coleção não dialogam com os interiores de caixas de sapato. De resto, como ex-propritário de um antiquário que acabo de extinguir, vou abrir um brechó no bairro do Guará, em Brasília, a fim de fazer concorrência ao CasaPark, tradicional shopping de móveis, design e decoração da capital.
“Valet de Nuit”, Paul Dupré Lafon pour Maison Hermès