Amigos e leitores me cobram uma avaliação sobre a pandemia. Confesso que, diante da pletora de notícias, artigos e reportagens sobre a maldita, julguei que seria desnecessário manifestar-me e o melhor a fazer, para não aumentar a baderna, diariamente alimentada a doses cavalares de “fake news”, seria sentar-me comodamente no isolamento da minha casa, como um “sitting duck”, e esperar pelo vírus ou pela vacina. Mas como eu me meto em quase tudo e, às vezes, até onde não sou chamado, creio que devo explicações.
O governo
O pior diagnóstico para a hecatombe que se abate sobre nós foi subscrito, juntamente com receitas de cloroquina, por Bolsonaro: “gripezinha”. Demonstrou, antes de mais nada, sua preocupação não com a vida dos cidadãos e cidadãs, mas com os efeitos da “gripezinha”, que logo se fizeram sentir, sobre a economia – mal gerenciada, diga-se de passagem, pelo Paulo Guedes – e, por tabela, sobre seu projeto de reeleição. Seguiram-se outras declarações desastrosas, como “e daí?…sou Messias, mas não faço milagre”, “não sou coveiro, tá?”, “todos nós vamos morrer um dia” etc., que culminaram com o epíteto de “maricas”, aplicado àqueles que se preocupam legitimamente em escapar do holocausto.
Dito isto, não há a menor dúvida de que estamos diante de um dos piores momentos da história recente da humanidade, sem perspectivas de quando o cataclismo será encerrado. No que se refere ao Brasil, a minha primeira avaliação da então recente descoberta de um vírus desconhecido na cidade chinesa de Wuhan, epicentro da pandemia, foi feita durante reunião informal com amigos, quando tais encontros ainda podiam ser realizados. Fomos unânimes em prever que, quando a infecção chegasse ao Brasil – não era uma questão de se –, não estaríamos preparados para enfrentá-la e seríamos um dos países mais afetados. Não deu outra! À incúria do governo – termo sabiamente utilizado pelo Ministro Lewandowski – juntar-se-ia o fato de sermos a Nação do carnaval, do futebol, da praia, ou seja, das aglomerações, dos toques corporais, das satisfações efêmeras e da inconsciência.
A imprensa
A imprensa, a meu ver, desempenha um duplo papel. Por um lado, noticia, analisa e informa, tendo criado, diante da pouca confiabilidade dos dados divulgados pelo Ministério da Saúde, um veículo próprio de aferição de casos de morte e de infecção, indispensável em qualquer planejamento de combate à pandemia. Por outro lado, exagera, causa pânico e banaliza a situação, veiculando, sem pausa, 24 horas por dia, matéria sobre a catástrofe, apelando para o sensacionalismo e a pieguice, com abundância de achismos e opiniões dos mais variados profissionais de saúde, os famosos “especialistas”, alguns dos quais sequer sabem sobre o que estão falando. Felizmente, são unânimes em recomendar, diferentemente do Presidente da República, a higienização das mãos, o uso de máscara e o isolamento social.
Veículos como a GloboNews, onde noticiários se sucedem ininterruptamente, repetem os mesmos dados, as mesmas opiniões, as mesmas análises “ad nauseam”. O efeito é previsível: o pânico ou a banalização. Já recebi telefonemas de amigos aos prantos, após assistir a esses programas – sem falar nos que me chamam contidos, mas seriamente preocupados –, seguros de que a inevitável morte lhes bate à porta. Por outro lado, de tanto atualizar dados, três, quatro ou mais vezes por dia, de tanto mostrar os hospitais repletos e, em contraste, as aglomerações, de tanto discutir o problema, banalizam a pandemia, sobretudo entre os mais jovens, que, bombardeados pela mídia, passam a considerar que tudo não passa de um fenômeno natural, inevitável e temporário.
Assim, para o bem de todos e para a saúde mental de muitos, estou convencido de que os órgãos de imprensa, sobretudo os televisivos, deveriam se ater a divulgar, uma ou duas vezes por dia, as informações, opiniões, análises e, sobretudo, as orientações sobre a covid-19. Tanto os anunciantes, cujos logotipos estão associados à hemorragia noticiosa, como os assinantes desses canais, deveriam transmitir-lhes tais preocupações. A contenção emprestaria autenticidade, segurança e respeitabilidade, em um momento de “fake news”, de incertezas e do aviltamento da situação praticado pelo governo.
A vacina
Não resta a menor dúvida de que a vacina será o divisor de águas entre, de um lado, o agravamento da pandemia e a debacle das finanças do Estado e, de outro, a recuperação da saúde coletiva e a recomposição do bem-estar econômico da população. Foi hercúleo o esforço da comunidade científica para criar, em tempo recorde, uma vacina eficaz, assim como foi pigmaleônica a iniciativa do governo brasileiro para trazê-la até nós. No momento, graças ao protagonismo do Governador de São Paulo, contamos, pelo menos, com a fabricada pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria como o Instituto Butantan. Não fosse a oportuna provocação de João Doria, ao anunciar uma data para o início da vacinação em São Paulo, estaríamos a ver navios, diante do negacionismo e da condução errática do governo Bolsonaro. Em plena pandemia, trocou o Ministro da Saúde três vezes, substituindo dois profissionais da área, que se negaram, diante de evidências científicas, a validar panaceias do Presidente, por um General submisso, especialista em estratégia e logística, mas que se esqueceu, simplesmente, de comprar agulhas e seringas. Estou convencido de que o governo federal não tinha o intento de vacinar a população, mas deixá-la adquirir, após mortes e infecções, a imunidade de rebanho.
Considerações finais
A pandemia escancarou e exacerbou um dos maiores anátemas da humanidade e, em especial, do Brasil: a desigualdade. Conforme o Secretário-Geral das Nações Unidas e o Diretor-Geral da OMS vêm denunciando e lamentando, embora sejam incapazes de apresentar uma solução para o problema, as nações mais ricas têm acesso privilegiado e prioritário a medicamentos e insumos necessários ao combate da pandemia e às vacinas desenvolvidas para erradicá-la. Pouco ou nada se sabe, por exemplo, da situação no Níger, na República Centro-Africana, no Chade, no Sudão do Sul, no Burundi, no Mali, na Eritreia, em Burkina Faso, em Serra Leoa e em Moçambique, para mencionar apenas os 10 países mais pobres do planeta, muitos dos quais vítimas de outras endemias e envolvidos em ou recém-egressos de guerras sanguinárias e fratricidas. Segundo a ONU, 235 milhões de pessoas, ou seja, mais do que um Brasil inteiro, necessitarão, em 2021, de ajuda humanitária para sobreviver.
Sabe-se, por outro lado, que os países desenvolvidos já iniciaram a vacinação, alguns com imunizantes produzidos em seus territórios, devidamente pagos e avidamente disputados pelos demais membros da comunidade internacional. Entre os países emergentes, o Brasil ainda patina na defesa da saúde de seus cidadãos, tendo chegado tarde, por negacionismo e falta de planejamento, ao mercado das vacinas, exceção feita à Coronavac, tempestivamente providenciada pelo Governador de São Paulo e politicamente combatida pelo Presidente da República. Em outra frente, o Brasil tenta, desesperadamente, importar da Índia doses do imunizante da AstraZeneca/Oxford que, embora insuficientes, contribuiriam para o pontapé inicial na vacinação. A omissão do poder público é tanto mais criminosa, quanto o país é o segundo em casos de morte e o terceiro em casos de infecção pelo coronavírus.
No plano nacional, os noticiários se fartam de divulgar imagens de hospitais públicos superlotados, de pessoas doentes em fila para a obtenção de um leito de UTI e da escassez de profissionais de saúde e de insumos como, recentemente, a de cilindros de oxigênio no Amazonas, que resultou em, pelo menos, 28 mortes por asfixia. Pessoalmente, posso testemunhar a precariedade do atendimento a pessoas menos favorecidas e a falta de testes de detecção do vírus – enquanto 6,8 milhões de testes, com data de validade próxima ao vencimento, foram “encontrados” num galpão em Guarulhos –, uma vez que paguei os exames de todos os meus funcionários, um dos quais foi despachado de uma UPA com uma prescrição para Novalgina, apesar de apresentar sintomas de covid.
Enquanto isso, os hospitais particulares estão repletos de pacientes, que pagam diárias exorbitantes, e os seguros de saúde, com o aval da respectiva agência reguladora, reajustam suas mensalidades, atingindo, sobretudo, os idosos. Mas as desigualdades não afetam apenas os mais necessitados que, aliás, receberam uma ajuda emergencial necessária, mas que praticamente quebrou o país, como o próprio Presidente admitiu. As desigualdades se fazem sentir também no plano regional, onde o Norte e o Nordeste são os mais prejudicados. Manaus, por exemplo, depois do Rio de Janeiro, foi a capital que menos recebeu recursos federais durante a pandemia, apesar do seu frágil sistema de saúde que acaba de entrar em colapso pela segunda vez. Descaso e incompetência do poder público.
Resta mencionar, finalmente, a perplexidade que me causam os apoiadores de Bolsonaro que têm cônjuges, filhos, pais, parentes e amigos. Imagino que devem estar dilacerados entre a premência de proteger seus entes queridos e a obstinação de se manter fiel ao tosco ideário negacionista do “mito”, criminosamente contrário à vacinação.